segunda-feira, 21 de outubro de 2013

texto [cecilia cotrim]




manta-intervalo

a máquina de fugas criada por tatiana grinberg no jardim de um casarão neocolonial nas bordas da floresta da tijuca faz deslizar temporalidades. movimenta rastros de corpos e outras intensidades, ativando enervações dentro/fora. a operação desloca progressivamente as coordenadas, retraçando pensamentos e percursos. leva a pensar sobre as coisas em termos de tramas e não-tramas, por dentro e por fora da carne que recobre o mundo. [atravesso a manta, respiro, sinto seu calor, a grama espeta minha pele. linhas repuxam meu corpo para a terra. vol d’oiseau. a grama, o cobertor de feltro, a floresta da tijuca, as ondas da estrada das canoas, da casa de niemeyer. o mar. já sinto certa tonteira, perturbações de labirinto, e que ressoam aqui bem alto, na curva do abdômen. percorro trajetos imaginários através da mata, seguindo outras linhas, planos, mapas. ao mesmo tempo, é como se fosse preciso focar tudo mais de perto, refinar o sismógrafo, pois há micropercepções envolvidas – em torno de gestos mínimos, e de outros, mais amplos. abrir-se ao sítio e às lateralidades: o sabor exato das framboesas silvestres, a água fria da fonte, o patchwork de azulejos e limos no meio da mata, a coleção dos mais estranhos objetos de porcelana. o tear inventado no galpão.

no jardim do museu, um gramado será suspenso, içado em direção à floresta. surpresas serão geradas aí – no campo da percepção, e dos usos, dos costumes…. durante longo tempo, apenas sabia dizer que, desde maio, havia grama brotando pelos poros de uma manta de feltro [manta daquelas que recobrem tantos corpos nas madrugadas geladas]. às vezes, entretanto, tudo vem junto: a grama, a manta, os cortes na terra nua, as fendas, refendas, lâminas, anéis, estacas, o tear, os fios, a trama de metal redesenhando o verde, estendendo o território do museu. e mais os desenhos que fogem para a mata

traços se confundem com trajetos/projetos/processos. probjetos?explorando a membrana de contato com o mundo, aí nesse mergulho nas profundezas da imanência, a obra vai testar um território gerado pelo deslocamento do gramado-manta, atravessando com novas linhas e afetos a vivência de um jardim, movendo espaços, prometendo enfim transformar a configuração de cada um dos encontros. [lembro de matta clark, que gostava de pensar o quanto o desenho das coisas à nossa volta, a cidade, a arquitetura enfim, transforma-se com nossos gestos, como ao usar um lugar qualquer na rua para amarrar os cordões do sapato: uma interrupção nos próprios movimentos cotidianos, que torna ridícula e absurda a ideia de função…. [imagino como uma tarefa de puro deleite investigar o uso, os possíveis usos, dessa coberta que, ao propor outro avesso, transforma o solo, perturbando todo o esforço de regularidade do platô ajardinado – tentativa de ordenação de um pátio que para sempre estará em mutação, em tensão dinâmica com a potência de mestiçagem da mata atlântica.... passar pelo platô, pelas árvores-mestras da operação, descobrir a trama, o jogo de forças que atravessa corpos/espaços. paralelas/infinito
seguir o caminho de terra, desbarrancado com as chuvas do outono e, depois, sentar no sofá de azulejos diante da fonte..... pausa em uma trilha que repete toda a tendência diagonal do sítio… até a nascente. dali, daquela sombra fresca, admirar os desenhos em fuga pela floresta 

a intervenção no museu do açude ‘escolhe’ o momento transitório desse jardim, entrelaçando estratos de memória e reinventando, com essa fuga em diagonal, as fronteiras com a floresta. novas tramas, linhas, arranjos surgem aí, tornando mais complexa a conversa nesse intervalo, enfatizando enfim o aspecto misto desse território. pitoresco? o jardim do açude, suscetível à floresta, a seu poder de polinização, de mutação, é um campo pitoresco, em elipse. [em um passeio pelo sítio, encontramos uma curiosa manifestação dessa aceleração mestiça: um canteiro de bromélias invadido por flores coloridas, atravessado por avencas e samambaias da mata, e por um pé de pau-brasil....

como a oitava pode ser substituída por “escalas não oitavantes” se reproduzindo a partir de um princípio em espiral; como a textura pode ser trabalhada de maneira a perder seus valores fixos e homogêneos para devir um suporte de deslizamentos no tempo, de deslocamentos nos intervalos, de transformações som/arte comparáveis àquelas op/arte...

essas palavras de deleuze e guattari parecem adequadas para propor, da capo, a retomada da experiência com a obra de tatiana grinberg: mudar, junto com as gramas, o solo, os traços, as tramas e cerzidos, ao vivo. 

cecilia cotrim, agosto/setembro de 2013






interval-blanket

the fugues machine created by tatiana grinberg in the garden of a neocolonial mansion at the edges of tijuca's forest makes temporalities slip. moves traces of bodies and other intensities. activating enervations inside/outside. the operation progressively displaces the coordinates, retracing thoughts and pathways. brings us to think about things as weave and non-weave, inside and outside the flesh that covers the world.  [i cross the blanket, breath, feel it's heat, the grass sticks my skin. lines twitch my body towards the earth. vol d'oiseau. the grass, the felt blanket, the tijuca's forest, the waves of canoas' road, niemeyer's house, the sea. i already feel a certain dizziness, disturbances in the labyrinth, and which resonate here high up, in the abdomen's curve. roaming imaginary tracks through the woods, following other lines, plans, maps. at the same time, it's like as if it was necessary to focus everything nearer, refine the seismograph. as microperceptions are here involved - around minimal gestures, and other, more broad. open oneself to the site and lateralities: the exact flavor of wild raspberries, the font's cold water, the tiles' patchwork and slimes in the middle of the woods, the most strange porcelain objects' collection. the loom invented in the shed.

in the museum's garden, a lawn will be suspended, hoist in direction of the forest. surprises will be there generated - in the field of perception, and in the uses, habitudes....  during a long time, could only say that, since may, there was grass sprouting through the pores of a felt blanket [blankets which overlays so many bodies in the freezing dawns]. sometimes, however, everything comes together: the grass, the blanket, the cuts on the naked earth, the slits, splits, laminae, rings, stakes, the loom, the strings, the metal weave redesigning the green, extending the museum territory. and more the fleeing drawings to the woods

traces mingles themselves with paths/projects/probjects?
exploring the contact membrane with the world, there in this plunge into the deepness of immanence, the work will test a territory generated by the displacement of the blanket-green, trespassing with new lines and affections the vivência [experience] of a garden, moving spaces, promising eventually transform the configuration of each encounter. [i remember matta-clark, who liked to think how much the design of things around us, the city, the architecture at last, transforms itself with our gestures, as when using any place in the street to tie your shoelaces: an interruption in your daily movements, which turns ridiculous and absurd the idea of function.... [i imagine as a task of pure delight to investigate the use, the possible uses, of this blanket which, as proposing another inside out, transforms the ground, disturbing every regularity effort of the landscaped plateau - ordination attempt of a terrace which will be for ever in mutation, in dynamic tension with the miscegenation potential of the atlantic woods.... pass by the plateau, by the operation's masters-tree [beams], discover the weave [plot], the forces game which trespasses bodies/spaces. parallels/infinite
follow the earth course, defiled with autumn rains and, after, sitting on the tiles' sofa towards the fountain.... pause in a track that repeats all the diagonal tendency of the site... until the spring. there, from that fresh shadow, admire the [fugue] drawings fleeing through the forest

the intervention in museu do açude 'chooses' the transitory moment of such garden, interweaving memory stratum and reinventing, with this diagonal in fugue, the borders with the forest. new weaves, lines, arrangements arise there, rendering more more complex the talk/discourse in this interval, emphasizing ultimately the mixed aspect of this territory. picturesque? the açude's garden, susceptible to the forest, it's pollination power, of mutation, is a picturesque field, in eclipse.  [in a tour through the site, we found a curious manifestation of this mestizo acceleration: a bromeliads' bed invaded by colored flowers, trespassed by maiden hair and woods fern, and a pau-brasil stem.... 

how the octave can be replaced by ‘non-octave-forming scales’ that reproduce themselves through a principle of spiraling; how texture can be crafted in such a way as to lose fixed and homogeneous values, becoming a support for slips in tempo, displacements of intervals, and son/art transformations comparable to those op/art...

those words from deleuze e guattari seem adequate to propose, da capo, the resumption of the experience with tatiana grinberg's work: change, together with the grasses, the soil, the traces, the weaves and darnings, live.


cecilia cotrim, agosto/setembro de 2013